No Brasil, o termo polarização nunca foi tão popular. Em 3 de outubro, um dia após os resultados do primeiro turno, a busca pelo termo no Google alcançou o valor 100, número que representa o pico de popularidade das pesquisas. Isso é reflexo do primeiro momento das eleições, no qual Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve mais de 57 milhões de votos com 48,43%, contra 51 milhões de votos em Jair Bolsonaro (PL), que totalizou 43,2%. Com uma diferença de pouco mais de 6 milhões de votos, o pleito de 2022, para o cargo de presidente do Brasil, teve o primeiro turno mais apertado desde a redemocratização do país.
Como um espelho do cenário nacional, Santa Maria está entre as cidades mais polarizadas do país. No Coração do Rio Grande, o candidato do PT ganhou, mas a diferença para Bolsonaro foi de apenas 606 votos, ou seja, 0,37 ponto percentual. No Rio Grande do Sul, a cidade perdeu apenas para o município de Alecrim, localizado no noroeste do Estado, que registrou empate entre os dois presidenciáveis, com 45,98% cada.
Em todo o Brasil, Lula e Bolsonaro tiveram 45% dos votos válidos em 335 municípios, segundo a análise do cruzamento dos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) feito pelo Diário. E no cenário santa-mariense, a polarização pode ter alguns motivos. De acordo com o cientista político e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) José Carlos Martines Belieiro Junior, a cidade possui um histórico político que pode ajudar a compreender a diferença de menos de 1% entre os candidatos à Presidência que disputam o segundo turno.
– Dá para explicar por duas razões principais: a força do PT e a força do Bolsonaro. O PT, como partido, é o maior em número de filiados em Santa Maria, seguido por outros como o MDB. E é um partido com lideranças conhecidas e atuantes. Por outro lado, a força do Bolsonaro, independente de partido, é muito grande no país e a cidade se torna um reflexo disso. São as duas grandes forças políticas hoje. Além disso, Santa Maria é uma cidade universitária e é também um polo militar, isso pode nos ajudar a explicar os resultados do primeiro turno – ressalta o cientista político.
Nesta reportagem:
DemocraciaAfinal, o que é a polarização política?PT x PDSBDe volta a 2016Resultados desde a redemocratizaçãoOs extremos da vida cotidiana
Democracia
Apesar do acirramento da eleição, José Carlos Martines diz que a polarização não é uma novidade e faz parte da democracia. No entanto, a preocupação é com a radicalização de comportamentos, principalmente por parte de eleitores:
– Por si só, a polarização não é prejudicial. Numa democracia é impossível ter unanimidade, já que você tem visões diferentes, e isso é normal. O problema é quando se elege alguma personalidade para ser inimigo. Em países como França, Itália e Alemanha também é possível perceber essa fragmentação partidária. Então, polarização não é uma exclusividade brasileira e não podemos dizer se é ruim ou bom, porque isso faz parte da democracia. Democracia é conflitiva por natureza e é esse espaço de intenso diálogo.
Afinal, o que é a polarização política?
Apesar da popularização do termo, o conceito de polarização ainda gera dúvidas. No Google Trends, ferramenta que permite acompanhar a evolução do número de buscas por uma determinada palavra-chave, nos últimos 90 dias aumentaram as pesquisas como “o que é polarização”, “polarização significado”, “polarização política exemplo”.
Segundo José Carlos Martines, quando algumas palavras se tornam de uso comum, o conceito pode se perder ou, ainda, ser descontextualizado. A polarização é representada a partir de polos extremos e, para ele, não é o que acontece no Brasil.
– No espectro político, vamos ter a direita, o centro e a esquerda. O que acontece é que, desde 2018, temos a ascensão de uma nova direita, que pode ser considerada, na verdade, como extrema direita. Já o Partido dos Trabalhadores, que é historicamente tido como esquerda, está mais ao centro. Por isso que a polarização diz mais respeito aos eleitores e aos grupos que se formam do que propriamente a política brasileira – explica o cientista político.
PT x PDSB
Desde a redemocratização do Brasil, apenas duas eleições foram concluídas no primeiro turno, quando o candidato eleito obteve mais de 50% dos votos válidos. Em 1994, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foi eleito como o 34º presidente do Brasil durante o primeiro turno das eleições. Quatro anos depois, em 1998, FHC foi reeleito também em primeiro turno. Nos outros sete pleitos, os brasileiros se dividiram entre dois candidatos e, consequentemente, dois partidos. Durante anos, as eleições para a Presidência foram disputadas entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Em 2014, o segundo turno entre a petista Dilma Rousseff e o tucano Aécio Neves foi o mais dividido desde 1989. Na ocasião em que disputou a reeleição, a petista ganhou do tucano com uma diferença de 3,4 milhões de votos, cerca de 3,2 pontos.
O cientista político e diretor do movimento nacional Voto Consciente, Bruno Silva, compara a polarização política dos anos anteriores com a que acontece hoje no Brasil:
– Por ser uma característica comum do sistema democrático em que estamos inseridos, a tendência é que os eleitores se dividam em duas forças. Por isso que a polarização não é algo novo. A novidade é que, em 2022, o problema está associado a um traço que tem a ver com a cultura política, que são as relações violentas. Quando o conflito deixa de ser político e adentra em um universo de ataques pessoais, de desconstrução do outro, de não reconhecimento como opositor e, sim, como inimigo, pode se ter barbárie.
De volta a 2016
Há seis anos, quando os então deputados estaduais Jorge Pozzobom (PSDB) e Valdeci Oliveira (PT) disputaram a prefeitura de Santa Maria, os eleitores santa-marienses mostraram que a cidade, de fato, é dividida.
No segundo turno das eleições municipais de 2016, Pozzobom e Valdeci fizeram uma disputa eletrizante que acabou com a vitória do tucano. Só que a diferença foi muito pequena. Na ocasião, Pozzobom ganhou por apenas 226 votos de diferença. O resultado foi um dos mais apertados de todo o Brasil.
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Os extremos da vida cotidiana
Fotos: Nathália Schneider (Diário) e Eduardo Ramos (Diário)
Além da polarização política, uma série de dualismos pode ser observado na vida cotidiana. O principal deles, segundo o filósofo, professor e pesquisador da UFSM Djalma Cremonese, é a associação entre bem e mal, luz e trevas, céu e inferno. Essas e outras comparações estão presentes, principalmente, nas escolhas que são feitas, como o voto.
Ao longo dos séculos, não foram poucos os intelectuais que se dedicaram a compreender o porquê de termos um ímpeto de dividir para poder optar. A origem, de acordo com Cremonese, está nas reflexões sobre a natureza do ser humano que tiveram início no século 4 antes de Cristo.
– Na filosofia, a polarização é uma questão recorrente, que começa a partir dos questionamentos se o ser humano é bom ou mau por natureza. Na lógica de Aristóteles, ele vai dizer que o ser humano é uma animal sociável e político, que se diferencia dos outros animais pelo uso da razão. Essa prerrogativa é defendida por Rousseau que diz que o ser humano é bom, mas a propriedade privada o corrompe. Já Maquiavel, por exemplo, defende que a natureza humana é má. Somos covardes, ingratos, mentirosos, ávidos pelo poder. Hobbes, no Leviatã, compartilha isso e diz que existe um ímpeto pelo desejo. Ou seja, há milhares de anos existe essa polarização – explica o professor.
Apesar do dualismo, na filosofia é possível encontrar uma síntese que, de acordo com Cremonese, mostra que nós, humanos, não somos polarizados:
– Em Platão, encontramos a possibilidade de entender que os seres não são nem totalmente bons e nem totalmente maus. Ou seja, podemos ser altruístas, fraternos e, ao mesmo tempo, egoístas, enganadores e sedentos pelo poder. Isso se aplica ao nosso dia a dia e ao ímpeto que temos de decidir entre apenas dois elementos e, também, na política, em relação ao voto.
Diálogo
Na política partidária ou na vida cotidiana, a polarização não é um problema. No entanto, o que chama a atenção e preocupa é a radicalização. Uma das consequências seria a impossibilidade de diálogo entre os diferentes.
Para a professora do Departamento de Ciências da Comunicação da UFSM Aline Dalmolin, o radicalismo afeta a capacidade de comunicação e acaba por criar paredes. Assim, além da incompreensão, falta de diálogo em aspectos mais comuns da vida, é capaz de incentivar intolerâncias e violências, como a produção de notícias falsas, as famosas fake news.
– Hoje, nós temos um problema comunicacional. Os adversários convivem e isso é comum, vemos isso no futebol, por exemplo. Mas, quando você se fecha para o outro, se cria uma parede, se veda o diálogo. E como a comunicação é por algo em comum, nesses casos o que temos é uma situação não comunicacional. E com isso surge, por exemplo, a enxurrada de notícias falsas que têm sido produzidas nessas eleições e gerado cada vez mais conflitos – enfatiza.